quarta-feira, 26 de junho de 2019

1ª publicação sobre Santa Sára no Brasil...

Sara, a Kali

*Cripta da Igreja de Saint Michel e de Notre Dame de la Mer, em Saintes Maries de la Mer (Camargue) – França

Quer a lenda que pouco depois da morte de Cristo, as três Marias, Maria Madalena, Maria Jacobé (mãe de Tiago o Menor) e Maria Salomé (mãe de São João e de Tiago o Maior), foram atiradas pelos judeus numa barca sem remos nem provisões. Estavam acompanhadas da criada Sara, de José de Arimatéia, de Lázaro e de Trófimo. A barca aportou miraculosamente na praia arenosa próxima da foz do Petit-Rhône; hoje as Saintes-Maries-de-la-Mer são um lugar de peregrinação católica e um ponto de encontro dos ciganos.
A devoção da “gente da viagem” não se dirige às Marias, mas curiosamente à criada delas, Sara a Egípcia, Sara a Kali, Sara a Negra. Sua estátua se encontra na cripta da igreja, que esteve interditada aos gadjés até 1912. Nos dias 24-25 de maio, os boêmios passavam a noite ali, ofereciam cera à “Virgem Negra” e lhe enguirlandavam o vestido azul pálido de flores de rendas e de talismãs diversos. Em 1935, os gadjés tiraram-na da sombra para torná-la uma dançarina de festa de feira: integrada na cerimônia cristã (a “Festa da Luz”), ela dá lucro. No dia 24 de maio, de manhã, seis boêmios, de túnicas brancas, levam ao mar a barca sagrada contendo as estátuas das santas. Nômades e gadjés assistem das praias a bênção do mar, feita pelo padre em sua barca. Os turistas vêm do mundo inteiro ver Sara na peregrinagem da mentira. Mas a Kali não tem o que fazer do sol do gadjó.
Sua boca só tem sorrisos para os Roms, que sabem encontrá-la na sombra de sua cripta; em horas que eles conhecem e que vós não conheceis. Deixai-me contar-vos a aventura tal como a pude viver.
Só estando na cripta foi que eu compreendi. Embaixo dos degraus, parei. À direita, havia dezenas e dezenas de velas, da menor à maior, desde a oferecida pelo humilde cesteiro à colocada pelo chefe da tribo, milionário. As chamas conjugadas jorravam luz. No seu vestido talhado numa fazenda de dançarina de feira, Sara sorria para mim.
Eu tinha feito o caminho de Paris às Saintes-Maries-de-la-Mer só para cruzar a igreja correndo, descer alguns degraus e, depois, ficar diante da padroeira dos ciganos.
Eu sabia que, para um cigano, existia algo mais que essa estátua escondida no subsolo de uma igreja. Nessa cripta, onde pela terceira vez eu punha meus pés, com vinte e oito anos de intervalo, o jovem, que eu era em outros tempos, tinha depois esfregado o couro nas velhas carapaças dos kakus, e minha visão era diferente. Não estando absolutamente convencido da virtude sobre-humana de uma simples estátua, eu procurava compreender de onde vinha seu incontestável feitiço. Os sábios tinham-me ensinado que os objetos mortos só podiam viver na medida em que o homem lhes dava a vida.
O mesmo se dá com o violino e o arco; sem o artista que os sabe utilizar, são dois objetos inúteis. Sei agora que Sara das Saintes-Maries-de-la-Mer é, para os ciganos, o que é o violino nas mãos do violinista: um instrumento. A arte está em saber fazê-lo vibrar. Em termos de magnetizadores ou de feiticeiros, a estátua de Sara a Kali está “carregada”. Nela se condensam as energias sutis de muitas gerações de nômades. O princípio é o mesmo utilizado na feitiçaria, quando a efígie de uma pessoa, a quem se quer o mal é “carregada”, depois furada com agulhas. Essas práticas bizarras são velhas como o mundo, mas não reconhecidas ainda pela ciência oficial. No caso de Sara, as emanações sendo benéficas, recaem sobre a coletividade reunida em torno da estátua. Os que preservaram certa forma de sensibilidade poderão, portanto, provocá-las e depois captá-las. Além das vantagens físicas reais, eles extrairão um sentimento de alegria, de bem-estar e de conforto.
Tudo isso está longe do culto habitual dos santos, e há, mesmo kakus que pretendem que a lenda de Sara – se não foi inventada em todos os detalhes – não passaria de um pretexto. É por isso que tenho a certeza de que o olhar do padre das Saintes-Maries não penetrou jamais o rosto de gesso de Sara a Negra.
A oração é uma coisa por vezes necessária – disse-me um dia Hartiss. – Reconforta os homens fracos. Pode ser também uma música, mas, para ser eficaz para o homem, não deve surgir do fundo da memória, mas jorrar do coração como uma fonte, porque a fonte que jorra do ventre da terra tem mais força natural que o canal constituído pela mão dos humanos. No dia em que fores à cripta das Saintes-Maries-de-la-Mer, constituída pela mão dos homens, fecha os olhos diante de Sara a Negra e conhecerás a fonte em que se banha a alma dos meus irmãos de raça.
Se Santa Sara é para os feiticeiros ciganos um “suporte psíquico”, ela é para a coletividade da “gente da viagem” a própria imagem da Mãe.
“Não é a volta sobre ti mesmo, dizia-me Pierre le Petit, kaku em Arles, que vais encontrar nas Saintes, é o ventre de tua mãe, o sorriso de tua mãe, sua boca, seus olhos, suas mãos e sua energia. Anda descalço, com duas velas nas mãos, apanhadas no banco de ferro onde as puseram seus irmãos, vai olhando para ela com teus olhos bem abertos, vai sem que teus olhos cessem de olhar para os dela. E quando tua boca estiver perto da dela, vê-la-ás sorrir e pronunciar teu nome. Então fecharás os olhos, depois os abrirás lentamente. Seu sorriso será diferente.”
Sem o poder do olhar, Sara a Kali não seria para mim mais senão uma efígie como as outras.
Atribuem-se à histeria certos fenômenos de estigmas, de visões. Se os estigmas são visíveis, a visão só é perceptível para aquele ou aquela que a experimenta. Sua existência, não sendo nada palpável, os gadjés chamam-na de alucinação, salvo se for de origem religiosa. Eles falam então de uma visão. A história das religiões está submersa em fenômenos de estátuas que choram ou que se animam. Logo no princípio de nosso encontro, Hartiss me dizia:
- Não rejeiteis tudo em bloco pois, no fundo de cada coisa, uma certa verdade permanece. Por mais estranhas que possam parecer, essas investigações extra-sensoriais não são menos perceptíveis para aquele que conhece seu mistério.
O escritor, o músico, só existem em função dos que os julgam.
Aquele que sabe como dar vida a uma estátua de pedra, de madeira ou argila, não o faz senão para si mesmo. É ao mesmo tempo o escritor e o leitor, o músico e o auditório, única testemunha e juiz único do que ele mesmo cria.
Por uma contração muscular dos olhos, chego a fazer Sara a Kali sorrir na sua cripta. Seu sorriso me dá tranquilidade, a mesma que os meus amigos da viagem vem procurar. Os meios que eles empregam são diferentes dos empregados pelos kakus; são mais simples, pois se contentam em sentir a emoção sem procurar a fonte. Os nômades desejam e realizam o milagre quando chegam ao “lugar” em que Sara sorri, porque só na Saintes-Maries-de-la-Mer eles podem encontrá-la. A padroeira dos boêmios, em comparação com as outras santas, só existe nesta igreja, em nenhuma outra do mundo.
“Reproduzir Sara em muitas Saras é impossível, pois seu sorriso é feito de todas as bocas dos Roms que beijaram seus lábios. Milhares de bocas pousaram sobre a sua. Cinquenta vezes em cinquenta anos eu pousei a minha. E se suas faces parecem viver é porque conservam o calor das mãos de nossos bebês”, dizia-me Pitt Zolaroff.
- Já pousaste tua boca na de Sara?
- Sim.
- De todos os gadjés que conheço tu és o único que conhece o rito, por quê?
- Porque sei o que vocês vêm buscar!
- O quê?
- A mãe! A mulher! A irmã! A rainha, a phuri dai secreta dos Roms do mundo inteiro.
Diante de mim, Solar baixa a cabeça e fala:
- Tu só conheces um segredinho. Mas o outro, “o grande”, será preciso que tenhas uma grande barba e muito amor. Quando o conheceres, quando conheceres esse segredo não falarás dele. Porque nossa única força, é o silêncio, Pierre, é o silêncio.
- Não escrevo tudo que sei, Solar.
- Então, é que compreendes o “silêncio”. Dizem que nosso povo vive na mentira. Muitas vezes a mentira protege o segredo. Nunca se leva a sério o homem que mente. E aí está sua força. 
Neste ano não revi Solar. O grande encontro dos Roms torna-se cada vez mais deserto. Dos meus amigos da viagem vindo de 1947, só tornei a encontrar um deles.
“As Saintes-Maries-de-la-Mer estão morrendo”, dizia-me o manuche Torino Ziegler. Eu digo que já estão mortas.
Há vinte e cinco anos, em 1947, atrás de Sara a Kali que ia para o mar levada pelos ciganos, seguia-se uma extensão de vestidos de todas as cores que caíam até os tornozelos das mulheres, um cortejo colorido. As crianças descalças, de acordo com as idades, seguiam as mulheres ou os velhos e se agarravam a “grande serpente” que partindo da cripta chegava até a praia.
Em 1973, mulheres de mini-saia, sapatos de salto alto ou calças compridas, seguiam o cortejo. Pareciam ter esquecido os tabus ancestrais: “Só descobrirás teu corpo em segredo, porque as tuas pernas são duas raízes que levarão a vida”. Cinquenta anos antes essas mulheres, depois de serem chicoteadas, seriam enviadas para a casa de um parente distante. Hoje, só as meninas fazem rodopiar seus vestidos ao som das guitarras.
A procissão não se arrasta atrás dela, à exceção de alguns ciganos que, com seus cavalos, perderam igualmente o espírito da estrada. A mecânica matou entre eles o espírito tribal. Conheço alguns que esqueceram o que os avós ensinaram.
Os jovens mesclaram-se com os hippies que os imitavam, enquanto os velhos balançam a cabeça, vieram aqui a procura do tempo perdido.
No ano passado, Sara usava ainda os feixes de chicotes à guisa de cinto e os lenços para diklos amontoavam-se no altar taurobólico pois ainda há ciganas que lhe ofertam a sua virgindade. Garras de pantera incrustadas em ouro estavam pregadas no diadema de pérolas falsas.
E, a seguir, um dia vi um kaku usar o silêncio como uma força. Nessa manhã a cripta estava cheia de turistas, homens e mulheres de short, máquinas fotográficas a tiracolo, falando alto como num museu de feira. Subitamente, senti sua presença. Não estava sozinho; um adolescente, seu filho, sem dúvida, o acompanhava. Abrindo caminho, logo se encontrou diante da estátua. Cobrindo-a então com seu corpo, ele voltou-se e só olhou para os gadjés. Seu rosto pareceu transformar-se. Seus bigodes, caindo sobre as pregas dos lábios, pareciam ter-se tornado o escrínio do desprezo. No mesmo instante, eu soube que ele ia “olhar”. O silencio mergulhou então naquele grupo. E, uns atrás dos outros, os turistas saíram da cripta e reuniram-se nos degraus. Em pouco tempo, só restavam sob a luz movediça das velas as nossas três presenças. Inconscientemente, coloquei-me ao seu lado. Ele agora fixava o olhar no rosto de Sara. Eu sentia fremir o seu ser. O adolescente deu um passo atrás; ele avançou e beijou Sara na boca, depois voltando-se para mim, interrogou-me com o olhar. Pondo então o indicador nos lábios, fi-lo compreender que eu já bebera na fonte. Depois abrimos passagem a amálgama humana, de pernas nuas e de espírito tomado de estupor; separamo-nos diante da pedra branca, na qual, diz a lenda, as duas Marias encostam suas cabeças para dormir.
Três vezes na semana, encontrei-o em silêncio. E há silêncios que falam. Não! A magia dos ciganos não está morta. Ela retorna ao colo da mãe. Antigamente, antes dos padres proibirem o acesso noturno, essa cripta servia de cama aos mestres-feiticeiros. Seus filhos, ainda hoje, vêm matar a sede nas fontes, mas por quanto tempo ainda?

Fonte:
DERLON Pierre. Tradições Ocultas dos Ciganos. São Paulo – Rio de Janeiro: DIFEL, 1975.

Pierre Derlon

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Brasileiros conhecem Santa Sára...

*Ilustração de Santa Sára, desconheço o artista

"Sem dúvidas, se brasileiros hoje conhecem e cultuam Santa Sára, a Kali, deve-se isso ao livro de Pierre Derlon, “Tradições ocultas dos ciganos”, que foi traduzido por Antonieta Dias de Moraes e publicado no Brasil em 1975, pela editora DIFEL. Após a publicação do livro de Pierre Derlon, brasileiros vão ver e ouvir falar de Santa Sára novamente, agora na telinha das nossas televisões em 1995, através da novela “Explode Coração”, de Glória Perez, o ingresso de Santa Sára nesta novela foi uma importante contribuição da Romni Kalderash Mirian Stanescon. Pronto, depois disso não teve quem não conhecesse Santa Sára, que passou então, erroneamente a ser considerada a “padroeira” de todo o povo Roma (Ciganos)."

*Conclusão de uma interessante conversa com o meu amigo Mikka Capella (Rom Sinte).

Hérick Lechinski

domingo, 23 de junho de 2019

terça-feira, 18 de junho de 2019

Sunto Sára Kalí...

Santa Sára Kalí

*Imagem de Santa Sára Kalí, na cripta da Igreja de Saint Michel e de Notre Dame de la Mer, em Saintes Maries de la Mer (Camargue) - França